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quinta-feira, 27 de abril de 2017

Ciência: a longa (longa) marcha

Há gente frustrada com o público de cerca de 500 participantes em São Paulo e uns 400 no Rio de Janeiro na Marcha pela Ciência do último dia 22.abr. Sabine Righetti, da Folha de São Paulo, por exemplo, classifica de fiasco. Sua base de comparação são o número de pesquisadores na USP: cerca de 6.000 docentes, além de por votla de 36.000 pós-graduandos e 50.000 alunos de graduação. E os cerca de 40.000 manifestantes nas marchas de Washington e de Chicago.

Também é possível se olhar para a metade cheia do copo: a participação foi do nível da de Genebra, com umas 600 pessoas. Em Rio e em São Paulo, choveu (em São Paulo, um pouco mais do que uma garoa) e fez um certo frio. No Brasil todo era um sábado ligado a um feriado de uma sexta. Em São Paulo, a organização contou com menos de um mês; o comitê não possuía nenhuma experiência anterior em manifestações dessa natureza (algum leitor atento poderá confirmar se este é o primeiro protesto de cientistas por meio de demonstrações públicas no Brasil); apesar de alguns apoios como da SBPC, da ANPG e da Aciesp*, a verba foi bastante limitada e os organizadores tiveram que bancar do próprio bolso muitas despesas. (Uma das marchas americanas conseguiu levantar mais de 100.000 USD. Quantia várias ordens de grandeza acima das arrecadadas em todas as 25 marchas no Brasil.) Frente a essas dificuldades - além da relativamente baixa cobertura pré-marcha por parte da imprensa.

Um levantamento comparativo mais extensivo haverá de ser feito em algum momento futuro. Uma parcial rápida indica que a Folha de S. Paulo, segundo seu acervo online, houve apenas duas menções à "Marcha da Ciência" antes do dia 22.abr. Uma única vez à marcha no Brasil, apenas à de São Paulo, em texto de Reinaldo José Lopes, "Ciência Degolada", de 9.abr o texto é sobre a situação precária da ciência no país, principalmente frente aos cortes em vários níveis governamentais, a marcha paulistana é mencionada somente no sétimo parágrafo. No Estadão impresso nenhum resultado é obtido em relação ao impresso; no online também há apenas duas referências antes do dia das marchas, uma de Lúcia Guimarães sobre as marchas agendadas no mundo e na véspera, no blog de Herton Escobar, o vídeo do presidente da ABC (Luiz Davidovich), convocando os cientistas à participarem dos protestos. O New York Times, por outro lado, apresentou uma cobertura pré-marcha bem mais ampla com pelo menos 7 notícias e artigos de opinião (inclusive contrários às manifestações dos cientistas).

Considerando-se esse quadro, é possível até se considerar as marchas no Brasil como um sucesso, ainda que não estrondoso.

Mas agora é observar os desdobramentos. A marcha mundial estendeu-se para uma Semana de Ação; no RJ alguns eventos como um debate na Coppe/UFRJ e manifestação no LNCC em Petrópolis; e também no SE, com debate na UFS. Outras ações estão em discussão. Por isso, para a SBPC, a marcha foi apenas o pontapé inicial da mobilização da ciência brasileira.

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O meu relato sobre o ato em São Paulo pode ser lido em "Marcha pela Ciência se espalha no mundo com pautas locais", reportagem para a revista Pesquisa Fapesp, em coautoria com a bióloga e jornalista Maria Guimarães, editora da versão online da publicação.

O que acrescento aqui é que:
.(pelo menos) uma pessoa presente, sem formação em ciências naturais (bacharel em Direito), reclamou do uso de jargões nos discursos;
.no discurso, a única manifestação de uma pessoa que provavelmente não era cientista (nem pós-graduando ou aluno de graduação em ciências) - embora o fato de ser um vendedor de ambulante não afaste totalmente a possibilidade - foi em relação à defesa feita pela Profa. Dra. Eleonora Trajano do uso de animais na pesquisa e no ensino superior; o vendedor pediu o microfone - a organização não quis atender em um primeiro instante, mas ante da insistência acedeu - e disse que os animais poderiam ser substituídos por políticos, o que, para nem tanto surpresa de minha parte (mas certamente bastante constrangimento), foi aplaudido por vários dos presentes;
.a hesitação da organização acabou sendo contraditória no sentido de que os cientistas saíram do laboratório exatamente para interagir com a população não-cientista;
.uma tônica dos discursos acabou centrando-se no obscurantismo (desde o negacionismo climático à crença em poderes de cristais) - como relatado pelo jornalista Herton Escobar no Estadão;
.de minha parte acho que é um enquadramento não muito produtivo dos discursos quando se pretende entabular um diálogo com o público numa posição tão da torre de marfim: "nós estamos certos, ouçam o que temos para falar e obedeçam";
.a maior parte do público presente parece ter sido mesmo composta por já "convertidos": os próprios cientistas e alunos de pós e de graduação;
.mas houve, pelo que me relatou o pessoal das barracas, sim, a participação de pessoas que não eram da academia: crianças e transeuntes curiosos que se aproximaram para saber o que ocorria na praça;
.se contarmos com essa circulação de pessoas que não ficaram o tempo todo, é possível que um número substancialmente maior do que as 500 pessoas estimadas tenham participado da marcha em São Paulo.
.o único político que vi por ali foi o ex-senador e atual vereador Eduardo Suplicy.**
.houve momentos de tensão entre a comissão organizadora e alguns oradores, especialmente os que se inscreveram durante o evento, após os discursos programados, quando suas falas ecoavam críticas nominais ao governo federal (geralmente seguida de manifestações de vários presentes gritando a palavra de ordem "Fora, Temer") - a organização interrompeu alguns discursos para frisar que se tratava de uma manifestação apartidária (um compromisso assumido com os organizadores da March for Science de Washington).**

*Upideite(29/abr/2017): Corrigido a esta data. Obrigado, Flávia Virgínio Fonseca.
**Upideite(30/abr/2017): adido a esta data.

 Veja também:
Paulo Jubilut/Biologia Total (24/abr/2017): O que a Ciência representa para você?
Natália Pasternak Taschner (25/abr/2017): Marcha, chuva e fogo.

2 comentários:

Roberto Berlinck disse...

Oi Takata,
Participei da marcha em São Carlos, que, segundo consta, teve a maior participação per capita do Brasil: 100 pessoas para 220 mil habitantes. Sua postagem é muito boa, com observações muito pertinentes. Acrescento que fiquei surprêso com a baixa presença na marcha de São Carlos, levando-se em conta a importância das estudantes e das universidades (USP e UFSCar) para a cidade (além das universidades particulares). Meus orientandos, por exemplo, não foram, o que me deixou muito desapontado. Desculpa de que foi em feriado. Hum. Tendo em vista que a grande maioria dos meus alunos é de pós-graduação, acho esta justificativa bem ruim. Afinal, vários deles querem seguir carreira acadêmica. Isso vale para todos os outros que também não foram.
Segundo ponto: a palavra não foi aberta para o público em São Carlos, apenas para os já programados. Nada contra, mas teria sido simpático abrir a palavra para o público. Mas o fato é que a marcha se iniciou às 11:00 h, perto da hora do almoço. Acho que teria sido intressante se iniciar mais cedo.
Várias pessoas com quem eu comentei me disseram que não ficaram sabendo. Que acharam que a divulgação foi falha. Eu já estava sabendo porque sigo os blogs, etc. E tinha uma faixa na entrada do campus da USP. Mas acho que talvez a divulgação poderia ter sido melhor.
Penso que seria necessário neste momento estabelecer várias estratégias para aproximar os cientistas do público em geral. Por exemplo, fazendo palestras em locais públicos (bibliotecas, teatros, centros culturais, etc). Por exemplo, organizando mostras científicas, exposições científicas, feiras, curiosidades, etc. Por exemplo, distribuindo folders sobre a importância da ciência. Falta articulação e organização. Seria muito bom aproveitar este momento.
Abraço,
R Berlinck

none disse...

Salve, Berlinck,

Bom ter notícias suas.

Acho 100 pessoas um número muito bom - levando em conta todos os fatores discutidos. Participar de protestos não é algo que conte ponto no lattes.

Mas essa parte da comunicação certamente precisa ser bem trabalhada. A gente tem discutido isso no grupo do facezucko da Marcha pela Ciência no Brasil.

Os sindicatos e movimento estudantil têm uma expertise maior na mobilização - e mesmo assim, nem sempre conseguem grande adesão. Unificando, mesmo que parcialmente, as agendas, creio que se possa valer desse conhecimento para arregimentar mais pesquisadores e alunos. Enfatizar que a longo e até a médio prazo (ou mesmo curto) essa situação tende a inviabilizar a ciência no BRA.

Mas como parece ser uma novidade esse tipo de ação entre os cientistas - ao menos há muito tempo não se procura isso - há bastante coisa que ainda precisa ser aprendida.

Alternativamente, marcam-se congressos coincidentes e colocam-se no programa ações conjuntas de protestos contra os cortes e sucateamento da ciência nacional.

Valeu pela visita e comentário

[]s,

Roberto Takata

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