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sábado, 21 de fevereiro de 2015

Oras bolas. Microesferas alienígenas como sementes panespérmicas? Short answer: Não.

Revista Galileu foi na onda do site do tabloide inglês Daily Express e publicou a matéria:
"Esfera de metal vinda do espaço expele material biológico e intriga cientistas"*

(Pausa. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10... Inspira. Expira. Inspira. Expira...)

Nada disso teria ocorrido se o Pica Pau tivesse avisado às autoridades tivessem seguido o protocolo alfa de notícia sobre astrobiologia, já publicado anteriormente no GR, mas reproduzido abaixo.

Figura 1. Reduza 83+/-24% dos micos do noticiário de astrobiologia com este simples diagrama.

A bizarrice está resumida no... bem, resumo do "artigo" (ahem) "científico" publicado, onde mais?, no Journal of Cosmology.

"A sphere of diameter 30 microns was isolated from the stratosphere at a height of between 22–27 kilometres. It was found to be mainly composed of titanium (with smaller amounts of vanadium). Nanomanipulation and EDX analysis showed that the titanium sphere contains a carbonaceous non-granular material which we suggest is a biological protoplast. Damage to the surface of the sphere revealed a carbonaceous, filamentous material, having a 'knitted appearance', which we also suggest is biological in nature. The titanium sphere produced a distinct impact crater when it impacted the carbon sampling stub. We conclude by suggesting that this largely titanium sphere contains biological elements which impacted the sampling stub at speed as it made the journey from space to the stratosphere."
["Uma esfera de diâmetro de 30 mícrons foi isolada da estratosfera a uma altitude entre 22 e 27 quilômetros. Descobriu-se que ela é composta principalmente por titânio (com uma quantidade menor de vanádio). Nanomanipulação e análise por EDX mostraram que o titânio da esfera contém um material carbonáceo não granular que sugerimos ser um protoplasma biológico. Dano na superfície da esfera revelou um material carbonáceo, filamentoso com uma 'aparência tricotada', que também sugerimos ser de natureza biológica. A esfera de titânio produziu uma distinta cratera de impacto quando chocou-se contra o suporte de amostragem de carbono. Concluímos sugerindo que esta esfera composta principalmente de titânio contém elementos biológicos que se chocou contra o suporte de amostragem a alta velocidade enquanto fazia sua jornada do espaço para a estratosfera."]

Meodeos, liga de titânio e vanádio... só pode ser tecnologia <voz do grego louco
Tsoukalos mode on>ALIEN <voz do grego louco Tsoukalos mode off>. Não é algo que a Nasa usaria, por exemplo, nos escudos térmicos de suas naves:
"Temperatures will climb highest at the bottom of the Orion capsule, which will be pointed into the heat as it returns to Earth. The heat shield is built around a titanium skeleton and carbon-fiber skin that gives the shield its shape and provides structural support for the crew module during descent and splashdown." (Grifos meus.)
["As temperaturas irãoá subir ao máximo na parte debaixo da cápsula Orion, que estará voltada para o calor quando retornar para a Terra. O escudo de calor é construído em torno de um esqueleto de titânio com peleo de fibra de carbono que confere ao escudo sua forma e confere apoio estrutural ao módulo de tripulação durante sua descida e impacto na água."]

Ok, não é da Nasa, é da Lockheed Martin.

Liga de titânio-alumínio-vanádio como Ti-6Al-4V é usada em artefatos espaciais - (em uma das figuras do artigo, de espectrometria EDX - energy-dispersive X-ray spectroscopy - da liga, há um pico correspondente a alumínio, por algum motivo, não mencionam no texto - figura 2 desta postagem) - e, em sua composição, há traços de carbono e nitrogênio que os autores encontraram.

Figura 2. Aparência da microesfera metálica (painel A) e composição da liga metálica (painel B). O X é uma protuberância de material de composição distinta (rica em carbono). Fonte: Wainwright et al. 2014.

Não afirmo que seja exatamente de um escudo de calor, mas o que acharam podem perfeitamente serem restos desprendidos de um artefato que mandamos para o espaço. O balão utilizado no "experimento" dos autores foi lançado no dia 31 de julho de 2013.

Nessa data, o cargueiro espacial Progress M-023M fez uma reentrada destrutiva na atmosfera depois de levar suprimentos para a EEI. Outro objeto espacial a fazer reentrada no mesmo dia foi o corpo do foguete Delta 2. (Não sei se esses objetos especificamente contêm partes com titânio e glúten fibras de carbono, mas vários outros objetos espaciais reentram todo dia na atmosfera.)

Grifei também "fibras de carbono" porque os autores do "artigo" "científico" falaram em: "carbonaceous, filamentous material, having a 'knitted appearance', which we also suggest is biological in nature".

No texto: "The particles of terrestrial origin also do not possess the 'knitted' layer of the LSO and any carbon they might contain would also likely be in the form of solid, granular soot particles which is not consistent with the organic ooze released from the LSO."["As partículas de origem terrestre também não têm a camada 'tricotada' do LSO - large spherical object, objeto esférico grande - e todo o carbono que elas contenham provavelmente estaria na forma de partículas de fuligem sólidas e granulares o que não é consistente com o limo orgânico liberado pelo LSO"] (Veja figura 3 desta postagem.)

Figura 3. Aparência do simbionte alienígena do uniforme negro do Homem-Aranha do material rico em carbono associado às esferas metálicas. Fonte: Wainwright et al. 2014

Aparentemente os autores acham que nanofibra de carbono é material extraterrestre.

Sério, os autores nem tentaram. O pessoal da Galileu também não. Não dá pra desculpar muito os jornalistas agora - não é a primeira vez que o Journal of Cosmology apronta: e, além dos impostos e da morte, podemos ter certeza também de que não será a última.

Via @OLucasConrado tw e Lúcia Eneida fb.

Upideite (22/fev/2015): Gilmar Lopes também comenta a nãotícia no e-farsas. Eu só discordo dos exemplos que ele traz de outros casos de esferas de titânio. Na verdade são esférulas de grafita de corpos celestes - como asteroides - com *traços* de titânio na forma de cristais de carbeto de titânio.

Upideite(25/fev/2015): Vou cravar a natureza dessa microesfera de titânio: é uma esfera de pó de liga de titânio Ti-6Al-4V grau 23: que apresenta diâmetros entre 17,36 e 44,31 µm. Esse pó é usado, por exemplo, para impressão 3D de objetos metálicos - geralmente com fusão (sinterização) com laser. O processo de sinterização leva a uma alteração da microestrutura e pode produzir poros. A microestrutura após a sinterização por tratamento térmico é muito similar à encontrada pelos autores (figuras 4a e 4b desta postagem).

a)
b)
Figura 4. a) Textura da esfera analisada por Wainwright et al. 2014. b) Alteração da textura por efeito da sinterização. Fonte: Reig et al. 2013.

A metalurgia de pó tem sido usada, por exemplo, para produzir compósitos de matriz de titânio reforçada por fibras de carbono.

Cuidado! Semente alien! Fonte: CNET.
Ou seja, a microesfera provavelmente é tão alienígena quanto o Banguela que os cientistas imprimiram para dar para uma garotinha que pediu a eles um dragão.

*Upideite(25/fev/2015): Em uma atitude louvável a Galileu acrescentou uma atualização de cautela na matéria.

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