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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Ciência: curiosidade e poder

A Agência Fapesp publicou uma interessante entrevista com o nobelista Erwin Neher. Destaco dois trechos:

"Agência FAPESP – Já que o senhor mencionou o tema educação científica, acredita que o ensino e a divulgação científica são atividades que devem fazer parte da carreira de um cientista? 
Neher – Claro que os cientistas devem fazer um esforço para explicar ao público como o dinheiro está sendo gasto. Também devem contribuir para recrutar jovens cientistas e torná-los interessados em sua pesquisa. Mas nem todo bom cientista é um bom comunicador; não podemos esperar que todos façam isso. Alguns são bons professores, outros apenas entediam sua audiência com detalhes sobre sua pesquisa. E isso não é bom. Por outro lado, na Alemanha, temos um jornalismo científico muito elaborado, com pessoas engajadas e treinadas para comunicar e fazer as coisas parecerem mais interessantes. Minha posição é: sim, é importante divulgar a ciência, mas sem tornar cansativo para o público e sem gastar todo o tempo do cientista com divulgação.

Agência FAPESP – Qual conselho daria aos jovens pesquisadores brasileiros? 
Neher – Para um cientista, é realmente importante ser cativado por um problema e isso significa estar constantemente pensando a respeito desse assunto. É o que chamo de estilo de vida da ciência. Claro que é impossível fazer isso 24 horas por dia; é preciso dormir, interagir com a família e tudo o mais. Mas, pelo menos, sempre que estiver sozinho, nos momentos tranquilos, deve-se pensar sobre seu problema, avaliar os experimentos de seu laboratório em um outro contexto, comparar os resultados com sua hipótese e tentar buscar soluções de diferentes ângulos. O jovem pesquisador deve avaliar se tem essa curiosidade que o cativa. Em seguida, deve avaliar se o problema que o instiga é pelo menos importante o suficiente para lhe prover o sustento. Afinal, não se vive de ar. Uma vez que esses dois requisitos forem atendidos, deve verificar se tem as habilidades que o tornam capaz de alcançar seus objetivos."

Na questão da DC, é coisa a se pensar, mas, porém, todavia, contudo, talvez mesmo uma comunicação entediante por parte de alguns cientistas traria benefícios - de um lado, a prática permite algum grau de aperfeiçoamento; de outro, alguém com mais paciência poderia garimpar informações importantes (os outros sempre poderão recorrer a outras fontes, inclusive os jornalistas de ciências).

Agora, sobre o conselho aos jovens pesquisadores, Neher também associa a prática científica à curiosidade. Vários cientistas - famosos e nem tanto - igualmente fazem essa relação como na série "Por que pesquiso?" deste blogue.

Em uma ação de autoplágio (em uma visão mais autocondescendente: em uma ação ambientalmente correta de reciclagem de bits), irei repetir o que publiquei alhures.

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Se você pede pra um cientista natural definir ciência, muito provavelmente sua definição irá gravitar em torno da palavra "curiosidade". Se você pede pra um cientista social definir ciência, muito provavelmente sua definição irá gravitar em torno da palavra "poder".
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Um cientista social, particularmente um sociólogo das ciências, tende a ser mais leniente com a filosofia. Aceita a frequentemente lembrada história de que para Platão (secundado por Aristóteles) a filosofia começa com o assombro. E só lembra da influência da filosofia nas questões políticas para realçar sua importância - raramente para expressar os perigos potenciais dos processos filosóficos.

As ciências ainda não romperam o cordão umbilical com a filosofia - da qual brotaram como filosofia natural. (Ainda que uma porção não insignificante dos cientistas naturais vejam a filosofia com desdém.)
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O "poder" em si não parece ser um bom elemento definidor de ciência. Sim, a produção das ciências envolve poder. Sim, o poder se vale das ciências. Mas: *toda* ação humana (ação e omissão voluntária) - filosofia, arte, esporte, economia... - envolve poder em sua constituição. E todo elemento de ação humana pode ser cooptado pelo poder - sim, inclusive a arte: toda comunicação governamental que se preze define uma marca estética das peças (logomarcas, paleta de cores, grafismos, trilha sonora...).

O fazer arte é política, apontam sociólogos em exaltação. O fazer ciência é política, apontam sociólogos em censura.

O poder pode ser uma característica necessária das ciências - ainda que seja uma afirmação duvidosa, aceite-se para fins de argumentação. Mas não o é suficiente para caracterizá-la, portanto.
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E "curiosidade" seria um bom elemento definidor de ciência? Não haveria curiosidade na filosofia, na arte, no esporte, na economia...? Sim, claro que há. Mas não é a partir disso que se aproximam das ciências?

Um amante dos esportes não cria uma ciência dos esportes ao tentar descobrir padrões de vitória e derrota? Não temos uma ciência econômica quanto tentamos saber por que o desemprego se mantém baixo mesmo em cenário de baixo crescimento? Não temos uma ciência (psicologia) da arte ao se tentar traçar quais elementos de uma obra levam o público a ter uma reação positiva ou negativa? A filosofia... bem, as ciências são filosofia natural, já disse.
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Então deixem-me valer de uma solução de compromisso.

Ciência é a ação política da curiosidade.
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Upideite(08/abr/2016): Um levantamento com cerca de 400 cientistas americanos membros de associações como a Academia Nacional de Ciências resultou numa lista ordenada dos valores fundamentais ('core values') que subjazem à ciência de excelência (Fig. 1).

Figura 1. Principais valores para a produção de uma ciência de excelência segundo cientistas americanos de elite. (Cada um deveria escolher 3 opções.) Fonte: Reunião Anual 2016 da AAAS.

via @luizbento

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