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sábado, 6 de março de 2010

Discutindo ciências filosoficamente 5

Thomas Kuhn talvez seja mais bem descrito como historiador de ciências do que filósofo. Sua principal obra: "Estrutura das Revoluções Científicas" é uma das mais citadas em trabalhos acadêmico sobre ciências.

Kuhn rompe com a tradição positivista da análise de ciências: para ele não ocorre uma progressão do conhecimento de modo uniforme. Segundo Kuhn, de tempos em tempos, as ciências passam por períodos de crise - em que as ideias vigentes são desafiadas pelo acúmulo de observações contrárias - que se encerram com uma total reviravolta no modo de pensar e de lidar com os problemas científicos (com a substituição dos cientistas da velha guarda por cientistas da nova guarda).

(Interessante notar aqui um certo paralelismo com as escolas uniformitaristas e catastrofistas da interpretação do registro geológico. Mudanças pequenas, graduais e constantes versus alterações grandes, abruptas e intermitentes. Praticamente a mesma oposição que encontramos entre os gradualistas filéticos e os defensores do equilíbrio puntuado na origem das novas espécies.)

Então, segundo Kuhn, as ciências, na maior parte do tempo, encontrar-se-iam em um estado que ele chama de ciência normal - a comunidade científica trabalha com um certo conjunto de ideias, crenças e valores, há um certo acordo em relação a que temas trabalhar e como abordá-los, que classe de problemas são interessantes de se estudar, que metodologia é válida ou não... Eventualmente pequenas observações não se encaixam nesse grande quadro teórico compartilhado, mas são deixadas de lado - denominadas de anomalias na terminologia kuhniana.

Com o passar do tempo, as anomalias se acumulam e o quadro teórico compartilhado torna-se progressivamente incapaz de explicar as novas observações. Há alguma insatisfação por parte de novos pesquisadores, mas a cultura científica vigente procura manter - algo por inércia, algo por conservadorismo (e confiança em um quadro que se mostrou útil no passado) - tudo mais ou menos como está. Eventualmente o acúmulo se torna de tal monta que o quadro teórico (bem como as práticas correntes) passa a ser mais e mais contestado - sobretudo por novos cientistas. Seria a época da crise - que Kuhn denominou de... crise.

A crise precipitaria a ocorrência de uma alteração completa no modo de pensar e agir da comunidade científica - novas abordagens, novos problemas, novas teorias -, período que Kuhn batizou de revolução (se lhe vêm à mente coisas como revolução francesa ou revolução bolchevique, não estará muito longe do que Kuhn quis ilustrar com o termo).

O aspecto mais controverso da visão kuhniana é que esse novo conjunto de problemas, abordagens e cultura científica seria tão diferente do conjunto anterior que não haveria parâmetros possíveis de comparação ou equivalência - o que se chamou de incomensurabilidade.

Podemos ilustrar a diferença de interpretação entre os kuhnianos e os "positivistas" (incluindo "realistas" e "progressistas") sobre o processo de evolução científica com a mudança da mecânica newtoniana para a mecânica einsteniana. Na primeira, o tempo é absoluto - a passagem do tempo é uniforme para qualquer sistema referencial -, ele é distinto do espaço - cuja medição depende do referencial. Na teoria de Einstein, a passagem do tempo depende do referencial - em um referencial em movimento, a passagem do tempo é dilatada, e o espaço é contraído na direção do movimento. Para Kuhn essa diferença criaria duas abordagens irreconciliáveis - são essencialmente diferentes: em uma o tempo é absoluto e em outra o tempo é relativo. Mas para os "positivistas", a mecânica newtoniana pode ser vista como um caso particular da mecânica einsteniana - os valores previstos a respeito do movimento, energia, massa e passagem do tempo convergem para velocidades muito mais baixas do que a da luz (e em situação em que o campo gravitacional também não é suficientemente intenso).

A ideia da incomensurabilidade - que é essencialmente incompatível com a noção de progresso científico - é rejeitada também em função da alta carga de relativismo epistemológico que importa: se não é possível a comparação, não é possível dizer que uma visão seja superior a outra - tão somente que uma é a adotada pela comunidade científica atual.

Como argumentei de passagem na primeira postagem da série, é difícil defender que não haja um progresso científico quando observamos a ligação atual entre ciências e tecnologia e como, ao longo do tempo, somos mais e mais capazes de prever com precisão certos fenômenos e controlar aspectos da natureza a nosso favor (embora muitas vezes com consequências imprevistas e problemáticas). No mínimo existe essa moeda em comum que permite a comparação entre duas visões de mundo a respeito do funcionamento da natureza - ou de parte dela: qual delas é capaz de fazer previsões mais amplas e acuradas?

No entanto, eventualmente será possível que haja duas teorias concorrentes - igualmente parcimoniosas - que, embora diferentes na essência, façam previsões equivalentes: o que me vem à mente é a contraposição entre a mecânica einsteniana e a mecânica quântica. Então, talvez seja uma descrição inacurada por parte de Kuhn que toda mudança pós-crise leve a um conjunto incomensurável em relação ao conjunto anterior. Mas o conceito da incomensurabilidade, ao contrário do que consideram os críticos mais ferrenhos, talvez não seja de todo inútil.

(Continua na próxima postagem da série.)

3 comentários:

Mr T. disse...

Kuhn é o filósofo da ciência que eu mais gosto. A maneira como ele incluiu componentes sociais à maneira de se entender o "fazer ciência" foi, de fato revolucionário, sem trocadilhos claro.

Gostei bastante do texto. Só queria adicionar que Kuhn sofreu, à época, a acusação de que seu sistema era incompatível com a noção de progresso científico.

O próprio Kuhn se defendeu dizendo que em seu sistema a noção de progresso se dá no sentido de que o novo modelo estabelecido através da revolução responde MAIS questões do que o anterior, ainda que deixe de resolver problemas que já estavam resolvidos com o sistema deposto.

É importante notar que quando Kuhn fala em "paradigma", ele não está se referindo à teorias específicas. Ele esta se referindo a um conjunto completo de teorias e tradições de uma comunidade. Daí a incomensurabilidade.

Em uma ciência revolucionária, não são só as teorias que mudam, mas a própria metodologia de trabalho e mesmo de definir o objeto de estudo.

Um bom exemplo de caso concreto é a grande Revolução Científica do século XVII, que depôs o aristotelismo e matematizou o universo. Uma quantidade enorme de conhecimento perdeu seu valor, por outro lado, o novo sistema permitiu todo o progresso científico dos últimos 4 séculos.

A série está ótima, continue com o bom trabalho.

Abraços,

Thiago Henrique Santos
www.polegaropositor.com.br

none disse...

Salve, Santos,

Valeu pela visita e pelos comentários.

A questão da sociologia pretendo explorar um pouco mais na próxima postagem.

Em relação ao paradigma, Kuhn usou em dois sentidos - em um sentido lato (que envolve tudo isso de tradições, metodologias, visões de mundo...) e em um sentido estrito (que pode ser uma teoria específica ou uma parte dela). De todo modo, a despeito de tradições, pontos de vista, culturas, etc. Ainda assim a questão da capacidade de previsão acurada me parece uma moeda que simplesmente não depende disso tudo - até por isso não consideramos coisas como astromancia e mitologias como boas explicações do mundo ou de parte dele.

E mais uma vez agradeço os comentários e o elogio.

[]s,

Roberto Takata

Mr T. disse...

Tem razão, já havia me esquecido de um texto meu aonde digo exatamente isso, que Kuhn reduz a acusação de 22 tipos diferentes de paradigmas para 2.

Valeu pela lembrança ;)

Abraços.

Thiago Henrique Santos
www.polegaropositor.com.br

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